Em artigo semanal, hospital neste jornal, sovaldi Leonardo Boff escreveu: “Cabe a Deus julgar a subjetividade do assassino da escola de estudantes. A nós cabe condenar o que é objetivo e saber localizá-lo no âmbito da condição humana”. É um belo texto que nos remete ao assassino que dorme em cada um de nós, click entrega a Deus o que lhe cabe e nos põe diante da tarefa propriamente humana de enfrentar o “Trabalho do Negativo”. Vamos lá.

Em 30 de março último, assisti estupefata ao Conexão Repórter no SBT, do jornalista Roberto Cabrini sobre a memória de um agente da repressão. Este, um conterrâneo nosso de Brejo Santo, José Lucena Leal, atualmente advogado e morador de Porto Velho (RO), que também foi advogado de defesa do acusado de assassinar Chico Mendes no Acre.

Diante das câmeras e muito à vontade contou com detalhes, e sem demonstrar nenhum arrependimento ou vergonha, as sessões de tortura de que participou ativamente, bem como execuções a sangue frio de opositores ao regime, já devidamente dominados.

Registrou um ligeiro mal-estar ao referir-se à morte de uma jovem de 17 anos no Araguaia, menos pela idade e mais pela coragem dela ao negar-se a revelar a identidade: “guerrilheira não tem nome”, ela teria dito antes de levar um tiro na testa do major Curió, segundo depoimento. Referiu-se à tortura como crueldade excessiva, chegou a tergiversar sobre sua necessidade, mas mostrou-se inabalável em sua convicção de ter prestado um relevante serviço à Pátria.

Dorme bem, não tem pesadelos, não escuta os gritos. Enfim, faria de novo se cresse necessário e se, agora digo eu, fosse para isso convocado por uma autoridade legitimada por suas crenças. Julguei que o programa poria em chamas o noticiário nacional, descartado o caráter preparatório da novela “Amor e Revolução” que estrearia dias depois.

Ledo engano. Salvo manifestações dos envolvidos, as vítimas diretas da repressão, fez-se um silêncio ensurdecedor. Nada de análises sobre mentes criminosas, reflexões antropológicas, psico-sociológicas, políticas, etc. Quem viu, viu. Ficou como um relato banal aquilo que em mim provocou horror.

O que antes se negava, por vergonha ou medo de punição, agora se confessa às claras e não sem certa ironia declara: “mas por que tanto alvoroço se todos sabem que a tortura até hoje é praticada por todas as polícias militares e civis do país?” Nenhuma interpelação a essa desconcertante afirmação. Ninguém se incomodou. Nada de discursos inflamados nos parlamentos, comandos policiais indignados, jornalistas enfurecidos. Nada.

Nos anos 60, o experimento Milgram confirmou que se pode acordar e até tornar cômico o assassino que repousa sob nossa boa-consciência de homens de bem. Basta uma autoridade convincente. Wellington Menezes foi-se, livrando-nos da difícil tarefa de julgá-lo com justiça. Já Lucena Leal, como seus comparsas, passeia tranquilo e bonachão entre nós com a subjetividade intacta, criando corvos que podem despertar para nos arrancar os olhos, sempre bem fechados quando nos convém. O que Deus tem mesmo a ver com isso, não?

Autora:

Sandra Helena de Souza -Professora de Filosofia e Ética da Universidade de Fortaleza

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